Zé do Caixão emerge não apenas como um personagem amoral, mas também como símbolo de resistência e originalidade no cinema fantástico brasileiro. Conheça um pouco mais sobre o legado de José Mojica Marins.
Quando se aborda o cinema brasileiro, o gênero fantástico nem sempre é o primeiro a vir à cabeça. Entretanto, filmes como "O Animal Cordial" (Gabriela Amaral Almeida, 2017), "Morto não Fala" (Dennison Ramalho, 2018) e "O Nó do Diabo" (Ramon Porto Mota, Jhésus Tribuzi, Ian Abé, Gabriel Martins, 2018) conquistaram tanto o público quanto a crítica. Ou seja, o Brasil não apenas mira nos filmes do gênero, mas acerta.
Um aspecto que eu valorizo muito no cinema brasileiro (e olha eu amo muito o cinema brasileiro) é justamente como a relação com os gêneros difere da abordagem hollywoodiana. As prateleiras de locadora nunca deram conta de incorporar os filmes brasileiros com os demais. Ficavam todos agrupados na categoria dos “NACIONAIS”. Claro, provavelmente por preguiça de uma organização mais criativa. No entanto, essa influência do fantástico se faz presente desde cenas dramáticas e de suspense, como em "Mãe e Filha" (Petrus Cariry, 2011), até em documentários como "Retratos Fantasmas" (Kleber Mendonça, 2023).
Contudo, é inegável que alguns pioneiros abriram caminho para o reconhecimento do gênero fantástico no Brasil. Se há um nome que merece destaque é o de José Mojica Marins, criador do icônico Zé do Caixão.
A transformação do criador em criatura sempre me intrigou. Parece que parte disso foi influência da imprensa da época, mas Zé do Caixão também passou a se auto referenciar dessa forma. Como ele mesmo confessou, ser chamado de Zé do Caixão não o incomodava. O único problema de ser o Coffin Joe, como era conhecido na gringa, era conservar as unhas longas. Essa questão, já misteriosa, torna-se ainda mais enigmática quando seus filmes deixam a categoria de trash experimental e passam a ser reconhecidos como cult.
A paixão de José pelo cinema começou na infância. Nascido em São Paulo, em uma família de imigrantes espanhóis, aos doze anos, ganhou uma Câmera V-8 e dedicou-se a criar "fitas" contando histórias elaboradas, com figurinos, lutas de espadas e vários personagens. Um detalhe curioso é que, em qualquer entrevista, independente da época, ele se refere aos seus filmes como "fitas" (fofo).
Aos 17 anos, fundou a Companhia Cinematográfica Atlas, e em 1958 lançou o filme "A Sina do Aventureiro". Ao longo de toda sua carreira, José enfrentou problemas com a censura, não apenas no contexto da ditadura militar a partir do final da década de 1960, mas desde suas primeiras obras em função do moralismo da igreja católica. Seus filmes eram desaconselhados pelos padres, impactando negativamente a bilheteria das salas de cinema do interior. Ele conta sobre um diálogo com um padre em uma de suas entrevistas:
“Vamos falar a verdade, Mojica. Eu tenho que dar uma notícia chata para você, aguenta firme. Você não nasceu para fazer cinema, esqueça o cinema, você veio para fazer outra coisa, esqueça desses filmes e parta para sua grande vocação, que é fazer anel”. Eu disse a ele que não era minha vocação; só quis aprender a fazer anel porque queria fazer a minha aliança de casamento. Mas que profissão eu tenho? Eu só fui porteiro e bilheteiro. Ele achou uma boa profissão, e eu falei: “Mas como? Vou ficar vendendo e vendo os filmes dos outros?”. E o padre: “É o caminho que Deus lhe deu”. E eu disse: “Puta que o pariu...”.
O coveiro Josefel Zanatas, conhecido pela alcunha de Zé do Caixão surgiu na década de 1960. Mojica Marins conta como teve a ideia do personagem:
“Vi num sonho um vulto me arrastando para um cemitério. Logo ele me deixou em frente a uma lápide, lá havia duas datas, a do meu nascimento e a da minha morte. As pessoas em casa ficaram bastante assustadas, chamaram até um pai-de-santo por achar que eu estava com o diabo no corpo. Acordei aos berros, e naquele momento decidi que faria um filme diferente de tudo que já havia realizado. Estava nascendo naquele momento o personagem que se tornaria uma lenda: Zé do Caixão. [...] Chamei a minha secretária, às seis da manhã. Ela se assustou, e eu expliquei que precisava dela porque queria fazer o resumo da história de ‘À meia-noite levarei sua alma’.”
(Fico louca de curiosa para saber se esse homem viu a verdadeira data de morte dele! Não encontrei nada a respeito. Se alguém souber, venha me contar – mas não à meia-noite).
A famosa trilogia composta por "À meia-noite levarei sua alma" (1964), "Esta noite encarnarei no teu cadáver" (1967) e "Encarnação do Demônio" (2008) consolidou o legado de Zé do Caixão, apresentando um universo complexo. Zé do Caixão não é um monstro convencional, mas sim um homem que deseja encontrar uma "mulher superior" para gerar um filho perfeito. Sua obsessão é a de dar continuidade à sua vida através do sangue.
Só que a escolha dessa “mulher superior” não se dá por conversas profundas sobre teoria do conhecimento na filosofia de Kant. Não. É sobre tortura mesmo. E não vou nem dizer como se faziam essas cenas na década de 1960 porque já é sabido. Dessa forma, os filmes do Zé são sim conhecidos por serem viscerais, realistas, chocantes, muitas vezes difíceis de assistir.
Curiosamente, Dráusio de Oliveira, o ator originalmente escalado para o papel de Zé do Caixão, desistiu por não querer lidar com caranguejeiras. Esses “pequenos” (peludos) detalhes foram essenciais para que José Mojica Marins interpretasse o personagem (porque foi o único que topou). Mas quero destacar que, muito mais do que segurar os bichos, as mulheres que aparecem no filme lidaram com as aranhas caminhando pelos seus corpos. Coragem!
Os dois primeiros filmes possuem um subenredo que fala muito sobre o misticismo, as superstições da sociedade interiorana brasileira. Mistura-se a uma eroticidade típicas do período, em que as pornochanchadas começavam a fazer sucesso nos cinemas brasileiros. Mas confesso a vocês que o que me faz gostar do Zé do Caixão (para além do questionável fascínio pelo cinema trash) são os momentos icônicos do roteiro. Não há uma cena sequer em que esse homem saia da taverna sem largar uma frase infame:
- Eu vou para a encruzilhada do cemitério... alguém quer me acompanhar? Há-há-há!
- Vocês estão querendo que eu tire as medidas do caixão? Há-há-há!
Cartola, capa, unha grande, cachimbo, barba, monocelha, e esse papo:
- O que é a vida? É o princípio da morte. O que é a morte? É o fim da vida. O que é a existência? É a continuidade do sangue. O que é o sangue? É a razão da existência.
O último filme da trilogia, "Encarnação do Demônio", foi lançado em 2008, 41 anos após seu antecessor. Na trama, Zé do Caixão surge mais sanguinolento do que nunca, continuando a história do coveiro após cumprir sua pena na prisão, porém, mantendo viva sua busca obsessiva. O projeto foi rotulado como "maldito" devido à infelicidade de três produtores falecerem antes de concluírem a obra.
Em 2000, Paulo Sacramento e Dennison Ramalho ressuscitaram o projeto, trazendo Mojica de volta aos sets de filmagem (um feito pelo qual serei eternamente grata). Esse filme vai além de encerrar uma sequência icônica no cinema fantástico brasileiro, ele deixou um legado para Zé, que veio a falecer em 2020.
Zé do Caixão transcende a tela do cinema, estabelecendo-se como um marco na história brasileira. A trajetória de José Mojica Marins, enfrentando censuras, desafiando convenções e construindo um universo próprio, evidencia não apenas sua paixão pelo cinema, mas também sua contribuição única para a cultura cinematográfica nacional. Ao criar um personagem tão icônico e complexo, Mojica não apenas inaugurou o caminho para o reconhecimento do gênero fantástico no Brasil, mas também deixou uma herança de ousadia e originalidade que continuará a influenciar gerações futuras – como os próprios produtores de seu último longa, que hoje são grandes referências para o cinema brasileiro.
Observação: na minha época era complicadíssimo encontrar alguma coisa dos filmes do Zé do Caixão, tinha que esperar a TV Brasil passar ou conseguir um DVD em alguma locadora underground. Parece que hoje está quase tudo disponível no Looke, NetMovies, Darkflix e outros, então aproveitem, e bons pesadelos!
Tenho um participação do Zé em um filme independente que realizamos, o Zé era uma pessoa admirável topou gravar sem olhar a quem .
Segue o link pra que quiser conferir
https://youtu.be/e-QdVJynwVA?si=_3_D1uN-gpW9f_DU