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  • Foto do escritorKelly Demo Christ

Holy Spider: todos parecem suspeitos

Através de uma história de crime baseada em fatos reais, o diretor Ali Abbasi aponta o machismo e radicalismo na sociedade iraniana, mas acerta sua crítica em uma cultura que vai para além do país.

 


Entrar no banheiro sozinha após a sessão de Holy Spider (Ali Abbasi, 2022) me deixou angustiada. Depois de me impressionar com cenas cruas de violência do filme, a luz fria e o ambiente claustrofóbico me lembraram das últimas notícias envolvendo o jogador de futebol brasileiro Daniel Alves, acusado de estuprar uma mulher no banheiro de uma casa noturna na Espanha.


Holy Spider é uma produção europeia, gravado no oriente médio, na Jordânia, sendo que o diretor Ali Abbasi é um exilado iraniano, que mora na Dinamarca. O filme se baseia em um caso real que ocorreu no Irã entre 2000 e 2001, quando o assassino em série Saeed Hanaei matou 16 mulheres nas ruas de Mexede. A localidade, tida como uma cidade sagrada, capital espiritual do país, é retratada de forma sombria e tumultuada. Fica clara a motivação de Saeed de tornar-se um herói, segundo ele, limpando a cidade de mulheres “corruptas”, e “impuras”, sequestrando e assassinando prostitutas.



No filme, a jornalista fictícia Rahimi, é quem investiga o caso. Enquanto a acompanhamos, fica atestado que o machismo, ou melhor, a misoginia, que leva Saeed a achar justificável seus crimes, também está presente em todos os personagens masculinos que surgem na narrativa. Seja o funcionário do hotel que não quer aceitar a estadia de uma mulher sem marido, o policial que a assedia, o colega jornalista que pressupõe que ela tivera um caso com um editor-chefe, ou as pessoas que defendem os atos de Saeed.


Diferente de outros filmes “true crime”, a história não termina com Saeed sendo pego pela polícia. Muito pelo contrário, alguns dos momentos mais tensos do filme ocorrem pelo suspense em não sabermos se ele será punido.


A cena de sua pena de morte sugere alívio, por fazer justiça às vítimas, algo que não havia garantia que ocorreria. Por outro lado, é extremamente perturbador que, como sociedade, aflore esse punitivismo. Abro um parênteses para dizer que cada vez mais observo o punitivismo como uma zona sombria, onde encontram-se os interesses da esquerda e da direita, mas que trata problemas sociais como se fossem ações individuais, despolitizando o contexto e as razões estruturais por trás dos crimes.


Ainda que Holy Spider mostre Saeed sendo enforcado, o filme termina com a clara mensagem de que qualquer um de seus apoiadores pode seguir seu legado – inclusive seu filho, que demonstra como os assassinatos ocorriam com um brilho no olhar, não se importando de usar a irmã pequena como exemplo, em uma das cenas mais perturbadoras do filme.


Esse comportamento de admiração também é visto nas personagens femininas, como caso da esposa de Saeed, que justifica a atitude criminosa do marido com os mesmos argumentos de “limpeza” da cidade. Aliás, escancarar e expor o machismo da sociedade iraniana é uma tecla que Holy Spider parece não cansar de bater.



A história que possui gênero policial, acaba incorporando traços de filmes de horror, explicitando cenas de assassinato em que Saeed sequestra, asfixia as vítimas com as próprias mãos, e desova seus corpos. Ver o personagens andando com os corpos na garupa de sua motocicleta, e não parecer ter preocupação em ser flagrado, mostra o quanto seus crimes foram facilitados, como é percebido por Rahimi.


O incômodo em torno disso vai crescendo ao longo do filme, e quando Rahimi passa a investigar pelas vias mais óbvias que a polícia estava ignorando, a prostituta com quem conversa diz que “todos parecem suspeitos”. Pode ser qualquer homem.


Nas palavras do diretor Abbasi: “a intenção não era fazer um filme de serial killer. Eu queria fazer um filme sobre uma sociedade de assassinos em série”. Vi o diretor sendo chamado de racista na internet, por ele estar taxando toda a sociedade iraniana. Porém, assistindo Holy Spider fica explícito que a discussão aqui é como um personagem pai de família amoroso, religioso, “cidadão de bem”, pode tornar-se um assassino por um desejo de heroísmo, de eliminar da sociedade aquilo que não considera puro, e ainda assim ter apoio daqueles que compartilham desse mesmo ponto de vista.


Não me atrevo a aprofundar uma análise sobre como o Irã possui uma sociedade machista, e fundamentalista religiosa. Mas acredito ser importante lembrar que muitas das leis estão ligadas à Revolução Islâmica em 1979, quando as mulheres perderam muitos dos direitos conquistados nas décadas anteriores. Menos de meio século depois, manifestações no país ocorrem para sinalizar a indignação feminina em relação à falta de direitos, e excesso de deveres, incluindo a obrigação de cobrir o corpo em lugares públicos.


Não é de hoje que se discute o anseio das mulheres de obterem emancipação na sociedade muçulmana. O filme estreou um pouco antes de estourarem os protestos de milhares de mulheres após a morte de Mahsa Amini, mulher iraniana de 22 anos que morreu na prisão por usar o hijab de maneira inapropriada. Detida pela “polícia da moralidade”, o ocorrido deflagrou a maior onda de protestos no Irã em décadas.


Como mulher brasileira, eu observo um enorme contraste com o país árabe, sobre o qual sei muito pouco (quase tudo aprendido com os filmes). Ainda assim, não é difícil ver o discurso de ódio contra mulheres e assimilar com um problema estrutural que vivemos por aqui também. 2022 foi um ano que bateu recorde de feminicídio no Brasil, com 699 casos só no primeiro semestre, e 31 mil denúncias de violência doméstica ou familiar no mesmo período.


Citado no começo do texto, o caso Daniel Alves foi o último que jogou na nossa cara uma cultura machista, que faz com que homens sintam que podem cometer uma atrocidade e sair impunes. Mas felizmente não foi o caso, mesmo que não seja difícil encontrar apoiadores do jogador pelas redes sociais, ou pessoas que colocam em questionamento a índole e as intenções da vítima.


Comparar uma república teocrática, como é o caso da iraniana, com o Brasil, não pode ser feito de forma leviana, levantando juízos de valor, argumentos racistas ou intolerantes. Porém, vendo Holy Spider é possível recorrer de um sentimento que o filme transmite: nenhuma mulher está segura.



O filme pode ser assistido na plataforma MUBI. Confira o trailer:





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