Longa-metragem francês coloca em perspectiva os bastidores do jogo político, em torno de suas contradições, disputas de poder, e a genuína dedicação à população.
Demorou um tempo para que eu conseguisse me envolver com a história de “Belas Promessas” (Thomas Kruithof), drama político francês que está sendo exibido em vários países desde o Festival de Veneza de 2021, mas que teve sua estreia no Brasil apenas agora, em março de 2023.
Logo nos primeiros minutos cria-se um contraste entre o mundo político, cheio de pessoas bem-vestidas e engravatadas, maioria branca, e a vida de quem está morando em um conjunto habitacional, principalmente imigrantes, que estão em condições precárias de moradia. A fotografia austera, e fria dos escritórios e salas de reunião, é completamente distinta do cenário escuro, caótico, de um vazamento de água que os residentes estão enfrentando no conjunto habitacional Bernardins, além de outros problemas como lotação em apartamentos sublocados, e uma fiação elétrica com riscos de incêndio.
A prefeita Clémence Collombet, protagonista interpretada por Isabelle Huppert, possui um interesse genuíno em restaurar Bernardins, mas para isso precisa de um apoio do governo de 63 milhões de euros, além da adesão dos moradores. Logo nas primeiras cenas vemos que algumas de suas preocupações são a roupa que será usada para apresentar a proposta, o atraso para conversar com o comissário Jérôme Narvaux, e em seguida a carta escrita pelo chefe do grupo de inquilinos, Michel Kupka, que denuncia as más condições de moradia e critica sua incompetência política, mas isso é posto como um mero “probleminha”. Ou seja, demonstra-se uma divisão abismal entre os problemas reais dos moradores, e esse contexto político, dominado pelos discursos, estratégias e uma atmosfera de cordialidade.
Assim, o filme gera um afastamento daquilo pelo qual os personagens realmente estão lutando, que na primeira parte praticamente não aparece na tela. Bernardins representa um problema, de difícil resolução, que a prefeita tenta solucionar antes do final do seu segundo mandato. Põe-se em questionamento: seu empenho é uma empatia genuína pelas famílias que vivem ali, ou simplesmente é uma forma de deixar um legado?
Esse questionamento vai sendo intensificado pelas ações tomadas pela personagem ao longo da trama, desde seu interesse por seguir a carreira política no cargo de ministra, ainda que precise suprimir sua liberdade para compor a pasta do Primeiro-Ministro, e a traição à colega de partido que iria lhe suceder, ao tentar concorrer ao cargo em um terceiro mandato.
Da mesma forma, o seu chefe de gabinete, Yazid (Reda Kateb), imigrante que vivera na periferia, em alguns momentos se declara pessoalmente desinteressado das questões habitacionais, ainda que muito empenhado em ajudar Clémence acima de tudo.
Para conquistarem o apoio dos inquilinos para que paguem as taxas mensais suspensas, Yazid propõe para Clémence abrir um processo contra o administrador legal do prédio, mesmo que sabendo das possibilidades de perder o processo. Tudo soa como um jogo de manipulação para uma causa maior, que é salvar a habitação. Mas com a possibilidade de assumir um cargo de ministra, com a possibilidade de ganhar maior poder, esse projeto também parece ser posto de lado.
Assim, Clémence vai sendo construída ao longo da história como uma personagem implacável, íntegra, mas que em diversos momentos é testada dentro do jogo político, e precisa colocar na balança suas prioridades e convicções, também revelando nuances, interesses, e posturas questionáveis. Vê-la em ação, deixa a trama interessante, principalmente quando contrastada com as ambiguidades de Yazid.
Há uma virada nos momentos finais, justamente com a aproximação de Yazid da população. Após ser acusado injustamente de agredir um menor de idade, Yazid prefere deixar o cargo do gabinete, para não permitir que Clémence precise ceder a chantagens. Como uma peça de xadrez que se sacrifica, Yazid tira a gravata, em um ato simbólico de seu rompimento com a política, e vai em busca de Kupka para conseguir o pagamento dos inquilinos. Ele vira a noite indo em cada apartamento, conversando com cada família, para garantir que com esse apoio será capaz de tirá-las daquela situação de insegurança. A política sendo feita de forma mais direta, com o apoio da comunidade por um bem maior.
Clémence, que não participara desse esforço, recebe uma ligação Narvaux dando a entender que já é tarde demais, que já não seria mais possível cumprir a promessa. Diante do novo cenário do jogo, ela percebe que vai precisar de ajuda do partido para reconstruir Bernardins, e que já não poderá concorrer à prefeitura. No impasse, ela também deixa de lado sua carreira política pelo bem dos moradores. Ambos se encontram no final, são peças que jogam do mesmo lado.
Se por um lado o filme demora para criar esse elo com o espectador, me parece que no fim é bem-sucedido em nos imergir nos bastidores do jogo político. A mensagem que é ali desenhada, no entanto, em alguns sentidos parece falar de política de forma muito abstrata. Não há uma definição sobre o partido de Clémence, se é de direita ou esquerda, e a resolução indicar que haveria uma forma mais “pura” de exercer a política, ao se afastar dos cargos e dos jogos de poder.
“Belas promessas” parece opor duas formas de política: aquela que sendo concreta, cotidiana e institucional, estaria vinculada a jogos de interesses nos quais o espaço público e privado se encontram em uma fronteira difusa, e outra, que apresenta uma visão de uma política “sem poder”, ou seja, talvez mesmo uma visão angelical das tensões e conflitos inerentes ao poder e seu exercício.
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