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Foto do escritorKelly Demo Christ

Garoto dos Céus: o que você aprendeu?

Após receber uma bolsa de estudos na mais prestigiada universidade do Cairo, Adam envolve-se em uma perigosa investigação, cuja finalidade é manipular a escolha do próximo Grande Imã de Al-Azhar.


 


Já conhecemos o gênero policial de trás para frente: investigação, suspense, intrigas, crimes. Ainda que Garoto dos Céus (Tarik Saleh, 2022) faça uso desses elementos, constrói uma narrativa com pontos singulares, principalmente por se passar no Egito.


Além das questões culturais e religiosas, que por si só incrementam a história com especificidades, o filme faz uma forte crítica ao governo autoritário, de Abdul Fatah Khalil Al-Sisi. Sua foto aparece durante todo o filme, nas bancas de comércio local, outdoors em prédios, e nas salas de reunião das autoridades militares. A presença do político é indireta, mas simbolicamente potente.



Mas fazer um cinema que critica as instituições estatais acarretou em consequências. Em 2015, depois do lançamento do filme O Incidente no Nile Hilton, e três dias antes do início das filmagens de Garoto dos Céus, os serviços de segurança egípcios ordenaram que o diretor Tarik Saleh deixasse o país. Desde então, seu nome consta em uma lista de "indesejáveis", ou seja, se entrar no Egito poderá ser preso. O filme precisou ser gravado na Turquia, em uma coprodução nórdica europeia, parceria entre Suécia, Finlândia, França e Dinamarca. Razão pela qual o longa é a indicação da Suécia para o Oscar de Melhor Filme Internacional deste ano¹.


O protagonista da história é Adam, um jovem inteligente, filho de pescador, que recebe uma bolsa de estudos para a Universidade Al-Azhar, no Cairo, epicentro do poder do islamismo sunita. No primeiro dia de aula, o Grande Imã à frente da instituição morre repentinamente, e agentes do governo passam a articular uma operação secreta para manipular a eleição do próximo líder religioso a assumir o cargo.


Zizo trabalha como agente duplo: estudante da universidade e espião do governo, passando as informações para o coronel Ibrahim. Após ser exposto, ele pede a dispensa, que só poderá ocorrer caso consiga um substituto. Adam acaba se envolvendo na trama por acaso, após ser testemunha do assassinato de Zizo, sendo manipulado por Ibrahim a ajudar nas investigações, expor um grupo de radicais de dentro da universidade, e por fim, auxiliar na escolha do candidato à Grande Imã segundo os interesses do Estado.


Mesmo com pontos específicos, que exigem do espectador certo conhecimento sobre o islamismo, e o contexto político do país, o filme consegue discutir a temática universal do crescimento — poderia ser enquadrado no chamado "romance de formação", gênero de larga tradição no qual se insere "O Nome da Rosa", obra literária de Umberto Eco usado como inspiração para Garoto dos Céus.


Adam é filho de um pai simples, e severo, que apoia o filho nos estudos por entender que a oportunidade de ingressar na universidade só surgiu pela vontade de Allah. Adam deixa sua aldeia, onde trabalhava na pesca, para estudar em uma universidade consagrada, o que entende como grande privilégio. Em um diálogo com seu colega Zizo, lhe é advertido: "Sua alma ainda é pura. Mas cada momento neste lugar irá corrompê-la".


Ao longo do filme, são várias as figuras masculinas que influenciam Adam, tornam-se figuras paternas, que ensinam ou causam medo. Ibrahim, representando uma face humanizada do Estado, é provavelmente a principal delas, envolve Adam em uma missão política e perigosa em troca de ajudar a família do jovem, mas a qualquer deslize também mostra uma outra face, da ameaça. Ibrahim, no entanto, parece se apegar a Adam, o defendendo quando surge a ordem de seus superiores de eliminar o garoto.


Os professores, autoridades religiosas que são candidatos ao posto de Grande Imã, também são figuras importantes na formação de Adam, representando a religião, e suas diversas facetas. O Sheik Omar Beblawi, lhe fala da importância de haver harmonia entre Estado e Religião para que haja paz, colocando em dúvida a visão moral do jovem, em que é preciso saber o que é pecado e o que não é, acima de qualquer outro interesse.


Em um dos diálogos finais, o Sheikh Cego discute com Adam a questão do desejo de Allah, que deve ser feito, e não mudado. A autoridade religiosa reconhece no rapaz uma enorme sabedoria, dizendo: "Você não é mais aluno, você não precisa que ninguém lhe ensine sua religião."


Na resolução do filme, Adam retorna ao lar, e ao reencontrar o Imã de sua aldeia é questionado: "o que você aprendeu?". A pergunta, que fica com a resposta em suspenso, nos leva a uma retrospectiva do filme, a jornada de Adam ao deixar sua juventude para trás, em toda a sua pureza, para agora tornar-se um adulto com o conhecimento da religião, mas também da política em toda a sua sinuosidade.


Assim como"nunca nos banhamos duas vezes no mesmo rio", frase de Heráclito, Adam na cena final em um barco pesqueiro com o pai, já não é mais o mesmo do início.



 

Notas:


1. A mudança de locação possibilitou liberdade criativa para a produção, mas também acarretou uma falta de precisão de diversos pontos, criticada pelo escritor Egípcio Shady Lewis Botros: "Por que os policiais e soldados egípcios no filme não estão usando os uniformes certos? E por que os turbantes dos homens Azhari, que normalmente são curtos (por modéstia), são mais longos e mais altos (como na tradição otomana)? E como suas barbas, que deveriam ser aparadas, segundo a tradição Azhari, podem cair até o meio do peito?". Leia mais neste link.





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