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  • Foto do escritorKelly Demo Christ

"Anatomia de uma Queda": Quando dois despencam ao mesmo tempo

O intrigante "Anatomia de uma Queda", como o título sugere, aborda o despencar. São repetidas as quedas que vemos acontecendo na vida de Sandra, uma escritora alemã, que se torna a principal suspeita de um crime.


A produção francesa tem sido destaque em premiações importantes, como a Palma de Ouro, Globo de Ouro e Prêmio do Cinema Europeu, e está atualmente concorrendo ao Oscar de Melhor Filme. O reconhecimento tem sido significativo para o filme, o roteiro, a atuação da protagonista Sandra Hüller e a diretora Justine Triet.


Eu adoro o gênero de tribunal, embora reconheça que não é do agrado de todos os públicos. "Anatomia de uma Queda" segue a tradição dessas narrativas, onde um evento ocorre, investigamos o que aconteceu, conhecemos os envolvidos e somos instigados a escolher lados conforme a história se desenrola. No entanto, a história apresenta diferenciais, como a incerteza se foi um crime, uma queda acidental ou um suicídio.


O filme começa com uma conversa entre duas mulheres mencionando um acidente. A imagem que vem posteriormente exibe uma escada de madeira, uma bolinha desce quicando, e um cachorro corre atrás. Meu destaque para esse primeiríssimo momento não é em vão: os sons do filme são sempre acentuados, chegam a ser incômodos, reveladores. O brinquedo que desce as escadas, sem que saibamos o que provocou sua queda, também não deixa de ser uma espécie de prelúdio do que está por vir.


Sandra está gravando uma entrevista com uma universitária, onde a tentativa da jovem é fazer a autora revelar seus segredos pessoais. Sandra, por sua vez, é astuta em evitar as perguntas, demonstrando interesse em conhecer melhor a interlocutora, mas sendo evasiva ao falar de si mesma. A entrevista é interrompida por uma música alta tocando no andar de cima, colocada pelo marido de Sandra, Samuel (Samuel Theis), que está trabalhando. Sandra opta por encerrar a conversa. A entrevistadora sai do chalé isolado, cercado de neve, ainda podendo ouvir a música de longe. Daniel (Milo Machado Graner), o filho de 11 anos do casal, também sai de casa, acompanhado pelo seu cão-guia, devido ao seu alto grau de deficiência visual.


Sandra sequer pediu para Samuel baixar o volume antes de optar por encerrar a entrevista, é o tipo de detalhe que me deixa intrigada. Sua reação por precisar parar o que estava fazendo em função da música do marido não foi de raiva. Pareceu algo mais próximo de resignação.


A deficiência visual de Daniel é amplamente discutida ao longo do filme, principalmente por ter sido causada por um acidente nos primeiros anos de vida da criança. É um ponto de crise na vida do casal, que precisou lidar com remorsos para conseguir permanecer juntos e criar o filho. Isso gerou culpabilizações, desgastes emocionais e uma série de efeitos com os quais Sandra e Samuel passaram a enfrentar ao longo de muitos anos.


De um ponto de vista simbólico, Daniel pode ser comparado ao espectador. Nós, que temos nossa visão turva dos fatos, não sabemos o que verdadeiramente aconteceu. Estamos ali como observadores, queremos saber a verdade, contudo, não estávamos presentes e temos acesso apenas a um pouco daquilo que nos é permitido.


 

[Daqui em diante, sugiro ler apenas se você já assistiu ao filme.]


Dado o famoso "alerta de spoiler", quero destacar que tenho minha interpretação do que aconteceu no filme. São muitas as quedas que o filme aborda: além da queda de Samuel, há a queda de Sandra. Em seu processo de luto, ela precisa se defender da acusação de homicídio. Como escritora e figura pública, são analisados até mesmo o comportamento de seus personagens secundários para encontrar provas de que ela seria capaz de matar uma pessoa. Ela, que sempre foi discreta sobre sua vida pessoal, se vê obrigada a discutir todos os seus atos perante o júri. Sua vida sexual, crenças, valores e a vida conjugal com Samuel são escrutinados em todas as sutilezas. As fraquezas tornam-se provas de culpa.


"Anatomia de uma Queda" é uma história de solidão. O isolamento da cabana, sempre rodeada de neve, a dificuldade de Sandra em falar francês e a ausência de amigos e familiares contribuem para isso. Quando se refere ao casal que ainda existia, constrói-se um retrato em decadência, onde mesmo que exista algum tipo de amor, não é possível expressá-lo. Sandra defende que sua relação tinha caráter intelectual, mas seu marido se sentia reprimido por ela, na sombra da escritora que ela havia se tornado. Ela, por outro lado, ressentia-se por ele não ter cuidado do filho, o que levou ao acidente que o fez perder a visão.



Devido às circunstâncias apresentadas, não vejo nenhum momento do filme em que Sandra tenha demonstrado algum tipo de comportamento suspeito. Mesmo quando está sozinha, não a vemos preocupada ou ansiosa em relação à possibilidade de ter deixado vestígios de seu crime. Da mesma forma, ela não tentou manipular o filho para falar a seu favor, tendo simplesmente aconselhado que ele dissesse a verdade. Diante do advogado de confiança, Sandra confirmou que era inocente. Após o fim do julgamento, mesmo que a sentença tenha sido favorável, ela confessa que não está feliz, pois não obteve uma recompensa – afinal, ainda está passando pelo processo de luto. Para além disso, não consigo ver onde ela poderia ter se beneficiado com a morte do marido. No sentido prático, não havia herança, e ela terá que assumir todas as responsabilidades que antes ele tinha, como as questões relacionadas à casa e ao filho.


Suicídio é um assunto complexo, permeado por diversos tabus. Um dos comportamentos suicidas que merece destaque é o de caráter vingativo, onde a vítima busca, por meio de sua própria morte, punir aqueles próximos, induzindo sentimentos de culpa e tristeza. É como se dissesse: "quando eu partir, sentirão minha falta" ou "a ausência me fará ser valorizado".


A abordagem desse tema é crucial, pois muitas vezes esse comportamento não é interpretado com a seriedade necessária. Os sinais emitidos são frequentemente considerados meros apelos por atenção, quando na verdade são pedidos desesperados de ajuda. É importante compreender que aqueles com potencial suicida estão pedindo ajuda.


Antes de concluir, vale ressaltar que 90% das pessoas que cometem suicídio sofrem de transtornos mentais, o que distorce drasticamente sua percepção da realidade, conforme explicado por Karen Scavacini, psicóloga e fundadora do Instituto Vita Alere de Prevenção e Posvenção do Suicídio. Portanto, o suicídio não pode ser simplificado como uma escolha de livre arbítrio ou um ato de coragem. Sobre prevenção ao suicídio, leia mais aqui.


Em "Anatomia de uma Queda", vemos claramente muitas dessas características em Samuel. Sua visão distorcida da realidade, a relutância em se abrir com a família e o psicólogo, a tentativa anterior de suicídio por meio de medicação, a conversa com o filho sobre morte, os acessos de raiva manifestados em autodano e agressão às paredes, o constante sentimento de fracasso. Ao observarmos atentamente, percebemos uma série de sintomas que se destacam. O mais alarmante é que, nessa queda, ele arrastou consigo aqueles que mais amava.


É brilhante o roteiro de "Anatomia de uma Queda", porque além de nos intrigar enquanto estamos assistindo, deixa reflexões profundas para depois da sessão. Nos envolve em sua trama e nos faz reconstituir diálogos, detalhes e pistas para encontrar as soluções do mistério que acaba ficando em aberto. Assim como na vida, muitas vezes nunca vamos saber exatamente o que aconteceu. Porém, temos que decidir em quem acreditar.


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