Quantos filmes você já viu que terminavam com um belíssimo final, um casamento, uma praia, um beijo?
Os famosos finais felizes lidam com um atendimento da nossa expectativa - muitas vezes é justamente por isso que buscamos assistir a um filme, para preencher uma angústia, uma frustração, um sentimento de solidão quase que inerente ao que corresponde a ser humano. Para nos dar esperança de que tudo pode terminar bem, e nós, felizes para sempre com o amor de nossas vidas.
Mas e quando o filme trata de rupturas? Quando trata da não sintonia entre um casal? De traição e perda?
Aí temos outro fenômeno, nos identificamos com o sofrimento, sentimos empatia, e até mesmo podemos ver ali naqueles personagens ficcionais muito do que vemos em nós mesmos, observar de perto seu comportamento e seus defeitos, chegar a conclusões sobre nossas próprias características e falhas, nossas relações e nossos problemas sociais.
Não que essa identificação não exista nos filmes de finais felizes, mas acredito que tratar do sofrimento é lidar com uma realidade mais crua, menos fantasiosa que os belos filmes de herói.
Me desafiei há alguns meses a analisar filmes que envolvessem a temática do divórcio, buscando abranger obras que se passassem em países diversos, e tivessem sido produzidos em diferentes períodos.
Confesso que lidar com tamanha infelicidade em relacionamentos visto tão de perto, bem como o cinema nos permite, é uma experiência intensa. E o que seria um texto geral se tornou uma análise profunda de cada uma das obras escolhidas.
Até porque, diria, esses casais merecem nossa intimidade.
Nas próximas semanas exploraremos a temática do divórcio publicando análises sobre os filmes Kramer vs. Kramer (Robert Benton, 1979, EUA), A Igualdade é Branca (Krzysztof Kieślowski, 1994, França/Polônia/Suiça), O Passado (Hector Babenco, 2007, Argentina/Brasil), A Separação (Asghar Farhadi, 2012, Irã) e De Onde eu Te Vejo (Luiz Villaça, 2016, Brasil).
Hoje estrearemos nossa série com o sueco Cenas de um Casamento, que como é característico da obra do diretor sueco Ingmar Bergman, é uma narrativa de cunho existencialista, onde são retratadas as relações humanas dentro de todas as suas contradições e contrastes. Cenas foi criado como minissérie para TV em 1973, e no ano seguinte lançado em formato de longa-metragem.
A versão original, com cerca de cinco horas de duração, já possuía a intenção de alcançar o público de massa, obtendo êxito neste quesito, e talvez influenciando nas taxas de divórcio e de casais procurando acompanhamento clínico na Suécia — as quais dobraram após o lançamento da minissérie.
Independente destes índices, é fato que Cenas causa impacto em seus espectadores. Bergman passou a ser frequentemente abordado por pessoas com problemas em seus relacionamentos, que buscavam conselhos e precisavam desabafar. Fica evidente uma profunda empatia que nos gera ao assistir a história do casal Johan (Erland Josephson) e Marianne (Liv Ullmann), casados há dez anos, vivenciando a ruína de sua relação após vir à tona um caso extraconjugal de Johan, experimentando a dor do rompimento e da mudança, bem como as novas oportunidades de encontrarem a si mesmos em novas relações.
Cenas de um Casamento fala, dentre outras coisas, do enorme abismo entre a imagem que temos diante do mundo, e a imagem que temos para nós mesmos. Remete a Sartre em sua máxima de que “o inferno são os outros”.
Na primeira cena vemos o então casal de protagonistas concedendo uma entrevista na qual falam sobre seu relacionamento, retratando sua relação consigo mesmos e com o outro de uma maneira harmoniosa, sem parecer irreal ou utópico, até consideram seus próprios defeitos e dificuldades, mas sempre soando felizes e satisfeitos ao extremo. Apesar disso, Marianne soa desconfortável em falar de si mesma, definindo a si mesma como “casada com Johan e mãe de duas filhas”, revela uma característica de ter uma imagem de si mesma muito dependente do parceiro, e até de saber pouco de si.

As impressões deste primeiro momento são reforçadas posteriormente, quando o casal se vê sozinho e onde a priori poderiam ser francos um com o outro. Depois de momentos acalorados de discussões, da própria separação, diversos reencontros que os dois tem durante dez anos levam a uma reaproximação e uma espécie de nova estrutura do relacionamento, que soa mais genuíno - talvez por deixar de existir a preocupação com a imagem que pudessem passar aos outros, uma vez que não são mais tidos como um casal. É irônico, e verossímil, que depois de anos de rompimento, eles parecem não se importar em expor seus defeitos e mesquinhez um ao outro.
Tanto Johan quanto Marianne possuem arcos próprios dentro da narrativa, e a mudança da mulher que sai de uma postura passiva por muito tempo, para momentos que beiram a histeria é de alguma maneira redentor para a personagem.
Na cena em que Johan confessa um caso e avisa que vai deixá-la, Marianne ainda se prontifica a querer ajudá-lo com a mala, e o trata em tantos outros momentos como um filho. Demonstra preocupação e responsabilidade. Johan, por sua vez, age como uma criança mimada, capaz de ferir com palavras e ações caso sua vontade não seja feita.

A obra pode ser analisada dentro de um prisma bastante freudiano, quando se pensa a respeito dos problemas apresentados pelo casal, tanto em termos de sexualidade, quanto da interferência de seus familiares na relação. A família raramente aparece, contudo sua presença paira em torno do casal em praticamente todos os momentos, e mesmo diante da iminente separação, a preocupação com a reação dos pais é manifestada.
Quanto à sexualidade, Johann a coloca como um dos motivos prioritários para o pedido de divórcio, se queixa a respeito da frigidez de Marianne, mas jamais se supõe como a motivação deste desinteresse. Após o divórcio, Marianne parece descobrir sua sexualidade, mas não a ponto de baixar a guarda de sua própria moralidade.
Cenas de um Casamento representa um tipo de relacionamento ocidental, que não consegue questionar seus princípios burgueses e possui dificuldades de trabalhar questões afetivas. Apesar de ser uma obra dos anos 70, é bastante atemporal, tendo em vista a persistência dos papéis ali representados, das convenções sociais, da repressão em torno dos sentimentos que ainda vivemos.

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