top of page
  • Foto do escritorKelly Demo Christ

O Céu de Suely: só as mães são felizes

O Céu de Suely (2006) de Karim Aïnouz, tornou-se um clássico do cinema brasileiro, e dentre outras questões faz a provocação: é preciso amar para ser mãe?

 


Após viver algum tempo em São Paulo com o namorado, a protagonista Hermila (Hermila Guedes) retorna à Iguatu, interior do Ceará. Quando se depara com a situação de abandono de seu namorado, o pai de seu filho, ela decide se prostituir através de uma rifa, para sair da cidade e tentar uma vida nova.


Essa é a premissa de O céu de Suely, filme de 2006 dirigido pelo cearense Karim Aïnouz, também diretor dos longas-metragens Madame Satã (2002), Viajo porque preciso volto porque te amo (2009), O Abismo Prateado (2011) e Praia do Futuro (2014).


Em Suely, Aïnouz cria uma atmosfera densa em que os complexos personagens parecem ter se desenvolvido livremente dentro de uma estética que flerta com o neorrealista italiano, uma vez que o filme possui muitos "não-atores", remete ao documental. Há uma cena em que Hermila oferece a rifa para alguns homens em um posto de gasolina, e não houve combinação prévia com os mesmos, que estavam naquele lugar, naquele momento.


O título Rifa-me já havia anteriormente sido atribuído a um curta-metragem realizado pelo diretor em 2000. Baseado na literatura de cordel, temos a mesma proposta em O céu de Suely, com acontecimentos pontualmente diferentes, aprimorados na versão longa trazendo maior complexidade a trama. No curta o ganhador da rifa é um grande amigo, equivalente ao personagem João Miguel (João Miguel) no longa, o que nos faz sentir um certo alívio enquanto espectador, pois se percebe o carinho que o personagem tem pela protagonista. Já na versão longa, Hermila se obriga a fazer sexo com um completo estranho, compondo uma cena constrangedora e impotente, ferindo a imagem do estereótipo maternal, do imaginário construído entorno da figura da mãe, imaculada, que ali se prostitui para poder partir.


Hermila é abandonada pelo namorado com uma criança, herdeira do mesmo nome do pai. A jovem tem 21 anos, e encontra-se na urgência de romper com todo e qualquer traço de sua juventude para sobreviver, pisoteando seus sonhos e desejos.


O título do filme se dá em uma tela azul, uma cor dúbia, que na língua portuguesa quase sempre está atrelada a um significado positivo, “tudo azul”, mas que também pode ser tida como um símbolo da tristeza, como no blues americano. Presente constantemente na paleta de cores, a protagonista utiliza azul em seu figurino em muitas cenas, e temos ainda a presença do céu, preenchendo a tela em sua vastidão.


O filme começa com imagens captadas em Super8, cheia de ruído e cor saturada, dotando a imagem de memória. Entra o off com a voz da protagonista narrando seus pensamentos em um tempo não determinado, de maneira poética-literária:


Eu fiquei grávida num domingo de manhã. Tinha um cobertor azul de lã escura. Mateus me pegou pelo braço e disse que ia me fazer a pessoa mais feliz do mundo. Me deu um CD gravado com todas as músicas que eu mais gostava. Ele disse que queria casar comigo – ou então morrer afogado


Aqui a gravidez é apresentada como algo lindo, fortalecido por uma sequência romântica entre Hermila e Mateus, ambientadas através da música "Tudo que Eu Tenho” (interpretada pela cantora Diana em 1972), versão em português da música "Everything I Own" de David Gates. Pontua a trilha musical brega do filme.


Esta cena, tanto em estética quanto em narrativa ficam a parte do filme, representam o passado da protagonista. Hermila viaja no ônibus com seu filho, voltando para Iguatu, sua cidade natal, sem que tenhamos a precisão do tempo que ela ficou fora, em São Paulo. Mateus Júnior, ou Mateuzinho, aparece pela primeira vez no filme, de costas, sozinho no plano. Uma sequência com três cortes rápidos: Hermila aparece ouvindo música no fone de ouvido, segurando o filho no colo enquanto fecha a cortina, e em seguida fumando ao lado do banheiro do ônibus, com ironia à placa de “proibido fumar” que aparece no canto. Aí já se apresenta Hermila com tons de irresponsabilidade.



A tia Maria (Maria Menezes), a busca de moto em um posto próximo à cidade. As duas se cumprimentam com um abraço, que faz o bebê começar a chorar, Hermila não se prontifica a fazê-lo parar, logo o entrega para a tia que fica encantada, afirmando “Ele é a coisa mais linda, Hermila”, a mãe responde “Mateus Tavares Ferreira Júnior. Tem o olhinho do pai”.


A criança tem o mesmo nome do pai, com a inclusão do “Júnior” no final. Fica-se com a impressão de que o filho de Hermila é o reflexo do seu namorado, e o tratamento que ela tem com ambos acaba se relacionando de acordo com os diversos momentos no filme. Aqui Hermila está cheia de esperanças, apaixonada pelo namorado Mateus, a quem ela espera o retorno à Iguatu.

O primeiro momento em que Mateuzinho aparece mais próximo da câmera, mostrando detalhes de seu rosto, se dá na cena em que a avó (Zezita Matos) lhe dá banho. O plano detalhe é carregado de um caráter de intimidade e poética, mostrando proximidade com o personagem, e no caso é utilizado juntamente a uma iluminação quente, dando um aspecto de conforto. Assim que a avó tira a criança do banho, a reação é a de choro, e de chamar pela mãe numa onomatopeia infantil, mas Hermila não se comove a atendê-lo deixando que a avó e a tia cuidem dele.


A próxima cena é a de Hermila fumando um cigarro na varanda, enquanto ouvimos o choro de Mateus ao fundo. Maria pergunta para a sobrinha se ele sempre chora desse jeito, Hermila responde sorrindo, com ironia: “É, às vezes dá vontade de deixar num mato e sair correndo”. É mais um sinal da insatisfação de Hermila em relação à maternidade, fortalecendo a imagem de sua irresponsabilidade, o que quebra o imaginário comum da maternidade, ideia de um amor incondicional.


Ao falar com o namorado em um orelhão, parte dele a pergunta a respeito do filho, sobre quem Hermila comenta que o choro é causado pelo calor, e que não acredita que ele vá se acostumar. Apesar do assunto a respeito de seu filho ter entrado como segunda preocupação da conversa, é aqui que se percebe em Hermila uma conexão com a criança, uma preocupação, simplesmente pelo fato de reconhecer a motivação do choro.


Ainda assim, qualquer resquício que possamos ter de que Hermila se importa com Mateuzinho se esvanece na cena seguinte, em que Hermila larga Mateus com uma amiga que não via há anos, Neide, para ir vender algumas rifas. Apesar de compreendermos a necessidade da personagem, a preocupação é inevitável: Neide também está trabalhando, de forma que não se tem a garantia de que ela poderá ficar de olho em Mateus o tempo todo. Hermila sai à noite, vai a uma festa, dança de maneira sensual, comprometendo a imagem que se tem das mães de maneira geral, imagem de imaculada castidade.


Elisabeth Badinter (1980) no livro “Um amor conquistado: o mito do amor materno”, pesquisa a mulher francesa do século XVI ao final do século XX, recorte feito para comprovar a tese de que o amor materno não é instintivo, e sim uma construção social. A autora explica a respeito da figura da mulher criada dentro do aspecto religioso, na busca da valorização da figura materna no século XVIII:


O modo como se fala dessa "nobre função", com um vocabulário tomado à religião (evoca-se freqüentemente a "vocação" ou o "sacrifício" materno) indica que um novo aspecto místico é associado ao papel materno. A mãe é agora usualmente comparada a uma santa e se criará o hábito de pensar que toda boa mãe é uma "santa mulher". A padroeira natural dessa nova mãe é a Virgem Maria, cuja vida inteira testemunha seu devotamento ao filho. (BADINTER, 1980, p. 222)



Em função dessa construção histórica dos últimos 300 anos, para grande parte do púbico soa inadmissível ver uma mãe em uma festa, se divertindo e dançando sensualmente, como é visto no filme em várias cenas. Evidenciamos um fortíssimo ideal europeu em nossa cultura, essencial para entendermos a figura imaginária da mãe.


Por que Hermila pensa ter o direito de ter uma vida social como se não fosse mãe? Aliás, onde estaria esse filho naquele momento?


Nesta mesma ocasião, Hermila conhece e se aproxima de Georgina (que utiliza o codinome Jéssica, bem como Hermila irá utilizar futuramente Suely), uma prostituta de quem se torna amiga. Todo o encaminhamento narrativo do filme faz crescer a visão de que Hermila é incapaz de suprir o que é esperado de uma mãe.


Hermila vai para a rodoviária de Iguatu esperar por Mateus, com quem havia combinado data e horário. Como Mateus não aparece, Hermila vai embora caminhando pela estrada, onde encontra João Miguel fazendo crescer a expectativa do espectador, que ainda fantasia assistir nesse filme uma história de amor clássica, em que a redenção da personagem parece ser encontrar outro homem.


É possível fazer a comparação entre Hermila e sua sogra, mãe de Mateus, a quem ela vai visitar. Vendo que o namorado não irá mais ajudá-la com o filho, a cena em que conversa com a sogra se dá com algumas tensões e cobranças.


Nota-se uma escolha peculiar da direção de arte, na cor do esmalte de Hermila e de sua sogra ser idêntica. O tipo físico, e as roupas também são semelhantes. Quando Mateuzinho começa a choramingar e a sogra alcança um controle remoto na tentativa de acalma-lo, também remete a imagem de mãe despreparada que tantas vezes Hermila acaba sendo.


Hermila também é mãe de um Mateus, que terminará aos cuidados de sua avó, irá terminar sendo criado em Iguatu, circulando pelos mesmos lugares, ganhando a mesma educação que o próprio namorado de Hermila, o qual a abandonou. A cena faz refletir se Mateuzinho irá seguir o mesmo destino do pai, de não enfrentar as responsabilidades que tem, até por ter por ser um homem e, portanto uma figura com privilégios sociais. “Meu filho só tem vinte anos”, justifica a sogra de Hermila, quando questionada sobre a justiça da personagem precisar criar um filho sem o apoio do pai. Reforça como a irresponsabilidade e negligência de um homem pode ser genericamente mais abonada que a das mulheres.


Hermila seguir em frente sua vida é um contraste em relação a outros personagens do filme, como a tia e a avó de Hermila. Quando convidada a ir embora de Iguatu, Maria responde: “não largo minha mãe por nada desse mundo”, uma postura diferente da de Hermila, que deixa o filho sob os cuidados da avó. Diferente de Maria, que consegue ver onde poderia ajudar a mãe, Hermila conclui que a avó cuidará de seu filho melhor que ela mesma.

A última aparição de Mateusinho, que é deixado quando Hermila parte de Iguatu aos cuidados da avó, se dá em um banho que a mãe dá no filho. Ela toca cuidadosamente em seu bebê, num tom quase de despedida. Não há, no entanto, nenhuma cena do filme em que Hermila apareça alimentando seu filho. Em uma das primeiras cenas, Hermila pede à avó que faça a mamadeira do bebê, ficamos sabendo então que ela não amamenta Mateuzinho pois seu leite “secou”. Não entrando no mérito da possibilidade de relactação feita com acompanhamento médico, o questionamento que temos é: mesmo não amamentando, por que Hermila não se prontifica a dar a mamadeira para seu filho? Por que ela empurra para a avó lidar com a situação como se o filho não fosse sua responsabilidade ?


Muitas das primeiras interações entre mãe e filho são feitas através dos processos alimentares, dentro de nossa cultura, principalmente através da amamentação. O ato de nutrir, de alimentar o outro, é tido como gesto de carinho. No filme essa relação se dá dentro de outras relações: quando Hermila se mostra duvidosa se a avó gostou de lhe ver, Maria afirma “nunca mais ela tinha feito comida boa assim”, fazendo possivelmente essa relação. Se a avó se importa tanto com a neta, a ponto de caprichar na comida, então ela conserva carinho por ela.


Em uma das cenas finais, depois da protagonista anunciar que vai embora, a despedida se dá em um jantar. A preocupação que gira em torno dos hábitos alimentares transmite esta relação de carinho e afetividade. Relação essa que jamais se dá entre Hermila e seu filho, a quem ela não aparece alimentando em nenhum momento do filme. A mãe negar alimentar o filho, e preferir passar essa função para a avó, mulher mais experiente na maternidade, colabora na construção de uma comparação da relação entre mães e suas amas-de-leite, bastante comum na França do século XVII e XVIII.


As mulheres aristocratas optavam por contratar uma ama-de-leite, mulher mercenária que ficaria responsável pela amamentação da criança, e sua criação até mais ou menos os quatro anos de idade, ato que se popularizou e se estendeu a sociedade urbana no século XVIII. Por que, podemos perguntar, as mães abriam mão dos cuidados dos primeiros anos de vida de seus filhos e os passavam instantaneamente para as amas de leite?


Dada à taxa elevada de mortalidade infantil até fins do século XVIII, se a mãe se apegasse intensamente a cada um de seus bebês, sem dúvida morreria de dor (BADINTER, 1980, p. 83).


Badinter usa esses dados característicos para comprovar sua tese: se existisse um instinto materno, nenhuma mulher iria permitir que levassem seu filho recém-nascido, principalmente conhecendo os altos riscos de mortalidade infantil da época, pois sabia-se que os níveis de doença e infecção eram altíssimos. As crianças passavam anos fora de casa, e quando voltavam se deparavam com a pessoa que lhes pariu, a partir daí o relacionamento começaria a se desenvolver, isso se o jovem não fosse logo em seguida enviado a uma escola interna.


A situação em relação à maternidade só se alterou na metade do século XVIII, quando se tornou acima de tudo um interesse do estado que as crianças sobrevivessem para se tornarem mão de obra, ou compor o exército do país. São construídos argumentos políticos, religiosos e filosóficos para que as mães cuidem de seus filhos, e é nesse contexto surge à imposição social do amor materno.


Por outro lado, é contraditório inferir que, uma vez o amor sendo uma construção social, não pode-se exigir de alguma maneira que haja responsabilidade dos pais para com os filhos. Hermila e o namorado Mateus são responsáveis pela criança que trouxeram ao mundo, que não poderia de forma alguma sobreviver por conta própria. Suprir as necessidades básicas de um filho é uma obrigação dos pais, porém não se pode exigir algo subjetivo como amor.


A avó é quem oferece a possibilidade de cuidar da criança, a qual Hermila aceita. Dá 500 reais para ajudar com as despesas da casa, e uma promessa de tirar a família dali. Se a personagem da mãe não se sente apta a cuidar de seu filho, por questões financeiras, psicológicas, ou de qualquer outro vínculo, contudo garante a segurança e o bem estar do filho, o deixando aos cuidados da avó, isso não seria uma prova ainda mais concreta de um amor materno? Em O céu de Suely, Hermila sabe que pela sua falta de experiência, ninguém mais apta a cuidar de seu filho que a avó, o que se considera ser o suficiente enquanto mãe da criança, que se garanta a sobrevivência e bem estar de seu filho, mesmo que não seja acompanhado por si.


O filme termina com a protagonista indo embora sozinha de Iguatu, mesmo que até o último segundo João Miguel vá atrás dela em uma moto. A heroína viaja sozinha, em busca de uma vida nova em que possa sonhar livremente, e buscar a felicidade dentro do conforto de saber que seu filho será criado pela mulher que representa a figura materna para si mesma.



 

REFERÊNCIAS


BADINTER, Elisabeth.Um amor conquistado: o mito do amor materno.

Tradução Waltensir Dutra. Rio de Janeiro, RJ: Editora Nova Froteira. 1980.


bottom of page